quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Pollyana com fome


Ela pintava a casa. A tinta tinha sido comprada há dois meses atrás, com o pouquinho que, bem, não é que tenha sobrado... A mais barata. Enquanto pintava a casa, sentia-se sufocada, estava sem ar e com tonturas. Não suponha que era porque estava, totalmente, sem alimentação. 

A pintura era um dos meios de fazê-la esquecer do fato... Só que não adiantava, mesmo sem perceber, tudo o que podia pensar era: fome, tenho fome, estou com fome e voltava para a pintura.  

Pollyana não se deixava abater (?), não chorava, continuava, metodicamente, cumprindo suas obrigações diárias. Pensava: eu tenho um teto sobre minha cabeça (teto que durante as chuvas não retinha a água e quase vinha abaixo); via todos os filmes que queria (pirataria), jogava no computador (pirataria e o mesmo computador de 10 anos atrás). Por que se importar se não tinha o que comer? Era uma pessoa feliz! 

Trêmula, terminou a pintura, verificando que seu trabalho diário já estava todo finalizado. A casa impecavelmente limpa. A próxima providência que precisava tomar era alimentar-se, mas isso ela não podia... Não sabia o que fazer, mas estava bem claro, sempre com sua postura positiva, quando percebeu vagava pela rua, como se fosse pedir esmola, mas não faria isso, por quê? A única responsável pelo próprio sustento, ela era mesma!

Parou em uma banca de jornal, capa da Veja: “A força da mente” sobre o câncer da Preta Gil, não leu a revista, não tinha dinheiro para comprar... Somente pensou: “Viu, a atitude positiva é tudo na vida, cura até câncer!” Absorta em seus pensamentos, com a mesma postura positiva, forte, postura de vencedores, de quem nunca se deixará abater... Um Uber Eats veio desgovernado em sua direção, o motorista, com um peso absurdo nas costas e a barriga roncando, teve um mal súbito e perdeu o controle do veículo, chocando-se, direto, na capa da revista e contra o corpo esquelético da Pollyana... Ela nunca mais sentiu fome, nem o motorista do Uber Eats.  

Margareth Sales

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

O caçador


Trago verdades. Na realidade, ele se pensava um caçador, mas não era, era um predador, porém, ainda, não estava preparado para essa conversa... Obviamente, é uma cultura arraigada, na qual crê-se que a insistência é igual ao flerte. Ou seja, não consegue ler o outro, não entende que a tal insistência que, supostamente, dobraria a figura feminina caindo de afetos por esse suposto caçador é nada mais, nada menos, que incômoda.

Talvez o termo sedução deveria ser repensado e mais do que podemos imaginar, talvez a sedução seja abusiva. Até então, tanto machos quanto fêmeas estamos imbuídos nessa ideia. Ele flerta, ela vai diminuindo as resistências. Ele flerta, ela começa a tremer nas bases, ou seja, ele precisa flertar para vencer a resistência dela. Não é assim que entendemos esses anos todos? 

Rebobina... Voltemos ao início... Se ela tem reservas e construiu um muro, é possível que ela não quisesse ser assediada. Que é a palavra perfeita para essa situação. O que o caçador entende como flerte, como parte do jogo, talvez não seja de verdade um flerte e unicamente um assédio que é uma forma violenta de vencer a barreira do outro, impondo um desejo que só vem de um dos lados. E o flerte? Palavra antiga, provavelmente, pouco usada nos dias de hoje, porém me remete a uma situação mais calma, mais pacífica, mais ligada aos encontros. Ele oferece uma flor e ela se vê encantada com o gesto. Ela machuca o braço e ele delicadamente, não invadindo, claro, pega um band-aid e coloca na ferida. Voilà, o flerte.  

Já o assédio: surgiu uma proposta interessante de trabalho, ela disse sim, ao trabalho. Havia um escritório, no qual a esposa dele, também, trabalhava. E todas as reuniões de trabalho eram marcadas na região dos lagos, fora do escritório, fora do olhar da esposa. Na primeira reunião, ela foi, afinal, foi a primeira... E parte do trabalho estava, realmente, ali, naquele momento. Na segunda reunião, como não era um vínculo empregatício, mas uma colab, ela disse não. Justificativa? Era cedo demais, ela era noturna, estaria cansada e a pauta não apresentava propostas mais consistentes para o projeto ir à frente.  

Na terceira reunião... Ah! A terceira reunião... Mandou um montão de fotos, dos inúmeros escritórios do qual era proprietário. Nada com nada, do projeto que estava em fase de trâmite, apenas, semioticamente, uma sinalização de poder. Uma forma de mostrar que tinha dinheiro. Ela pensou que o único dinheiro que a interessava, seria o seu próprio, construído pelo seu trabalho, o resto? Só resto! E ele sensualizou a Coca-Cola. Meu, a Coca-Cola!!! Aquela do Lulu Santos “tomar o mundo feito Coca-Cola" simbolizando liberdade, nunca sexualidade, afinal, não estamos falando de uma taça de vinho branco, ou mesmo tinto! A Coca-Cola, o símbolo do verão, do urso polar comemorando o nosso Natal quente. Natal, família...  

Ela precisava daquele trampo, talvez fosse questão de vida ou morte, ou comida na panela e ele só queria jogar o jogo, mostrar o quão educado, provedor, inteligente, ou seja, um partidão (casado e patético) para resolver os problemas dela. Toda essa insistência em se fazer notar, em mandar mensagens de bom dia, diariamente, só causou ojeriza. Tudo o que ele achava que estava bonitinho, tudo que ele imaginou um empoderamento macho-hetero-alfa que faria, qualquer uma, derreter-se, só causou desconforto e, por fim, ela desapareceu... 

Não havia mais o que fazer, o projeto tinha um preço e pessoas escolhem o preço que querem pagar, ela não queria pagar esse preço. Caro, demais! 

Margareth Sales